quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

"O RATO DOS BECOS"

Suntuoso, o grande templo de Mitra surgia por trás das espurcas barracas de bazares e mercearias que se estendiam por uma rua inteira; um contraste que os viventes da rua dos mercadores estavam acostumados a presenciar. Pináculos tingidos de vermelho e laranja, reluzentes, refulgiam o céu de alvorada. O vozerio era penoso e o ar tinha um cheiro forte de suor velho e carne temperada; a característica turba que cruzava os mercados todas as manhãs, trocando cotoveladas em um borrão de faces carrancudas. Cães disputando restos mal cheirosos de comida em caixotes empilhados era uma visão comum e, corriqueiramente, seus ganidos se mesclavam a confusão. Attalus despertava após mais uma noite sob a penumbra emitida pelas tochas dos soldados.

Com os pés descalços sobre a rua de pedra, uma criança saía da confusão dos mercados, abraçada com legumes. Juntara moedas por uma semana, lavando os pés dos trabalhadores e finalmente conseguira o necessário para comprar aquelas famosas frutinhas vermelhas que chegavam do sul de Turan; estas verdadeiras iguarias balançavam no bolso de sua túnica. Com o cabelo desgrenhado e escoriações nas pernas, inerentes a todas as crianças Attalusianas, o menino de apenas onze anos se chamava Turdal. Arquejante, caminhara sobre os ladrilhos de pedra por metade do distrito, até conseguir avistar a austera cabana de sua senhora, no fim de uma viela sinuosa, conhecida como “O pulgueiro”. Pisou em poças lodosas e abraçou ainda mais intensamente as compras, temendo os becos que eram escuros mesmo durante o dia. Usou o ombro para abrir a pequena porta de madeira e adentrou o casebre com os pés sujos.

Sua senhora jazia deitada sobre a cama de palha mal arquitetada, envolta ao negrume do único quarto da cabana. Turdal despejou os legumes sobre a mesa, mas manteve as frutas vermelhas em seu bolso. Içou uma cortina que dava para um beco; os feixes alaranjados espelharam a poeira que pairava na saleta. Pegou uma das frutas em seu bolso e levou na direção da cama de sua senhora. Era impossível não notar que a perna gangrenada dela escapava pela coberta; inchada e esfacelada, com tons que começavam no vermelho vivo, passavam pelo roxo realçado e se finalizavam no negro intenso. Veias azuis beiravam estourar e raros eram os dedos que ainda tinham unha. Turdal encobriu sua perna e então se sentou a beira da cama, sem conseguir evitar as tremedeiras que sempre sentia.

-Senhora Nephelia, escolha uma mão! _ Com as mãos escondidas, sussurrou no ouvido da velha que se entregava ao mais profundo dos sonos. Fora respondido com o silêncio. –Senhora Nephelia? _Mais uma vez, apenas o silêncio. A pequena fruta vermelha caiu e rolou sobre o assoalho. Segurou-lhe os ombros e balançou o corpo pálido. –Senhora Nephelia, acorda! _Turdal a abraçou. A voz ganhara um teor de lamúria, e, sucessivamente, vieram às lágrimas; pequenas gotas de cristal que despencavam sobre a pele enrugada do corpo que pendia nos braços frágeis de uma criança. –Não me deixe sozinho. _Impossibilitado de andar, o corpo de Nephelia repousava naquela cama há meses. No entanto, temente a Mitra, acreditava que um dia se levantaria. O menino se lembrou da noite passada, quando finalmente fizera sua senhora sorrir depois de meses. Se soubesse que aquela noite seria a última, teria se esforçado para tentar fazê-la sorrir mais vezes.

Aturdido e soluçante, o menino adormeceu sobre o corpo daquela que considerava sua mãe, clamando para que pudesse acordar e perceber que tudo não havia passado de um pesadelo.

Acordara quase no fim da tarde, com a cabeça pendendo sobre o seio flácido do cadáver. Atentou-se novamente ao corpo pálido; infelizmente, o pesadelo era real. Beijou a testa de Nephelia com os olhos inchados e marejados, e deixou o quarto à medida que ouviu uma lástima tênue sair do beco ao lado. Observou pela janela e vislumbrou uma menina, talvez mais jovem do que ele, que chorava recostada em um amontoado de lixo. Estava enrolada em
um trapo sujo que simulava a forma de um vestido. Não era o único a chorar naquele dia tortuoso de outono, afinal. Turdal seguiu para a porta, dando a volta no casebre para chegar ao pequeno corpo debilitado, que abraçava os joelhos em um beco sórdido. Não pôde deixar de notar o quão fino eram seus braços; “frágeis como gravetos”, pensou. O menino sentou-se ao lado, mas fora ignorado. Levou a mão a túnica e, após sentir que as frutas ainda estavam lá, puxou quatro- o máximo que cabia em suas pequenas mãos.

-Tem fome? _A garota suspirou e o encarou com seus olhos quase tão vermelhos quanto às frutas. Seu rosto encardido estava borrado pelas lágrimas. Após um célere momento, as arrancou da mão de Turdal de forma brusca, esmagando-as. A seiva escorreu por entre os dedos finos, que se afrouxaram quando percebera a sinceridade nas feições inocentes. –Como se chama? _Sorriu acanhado ao ver como devorava as frutas, mesmo amolgadas e sujas.

-Dammibia. _Respondeu a menina com os dentes avermelhados.

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