terça-feira, 14 de outubro de 2014

NASCIDO PARA A LÂMINA

Aquele foi um ano em que o frio do outono se igualou ao do inverno. O vento álgido da morte zumbia aos sopros nos vales do norte Zíngaro. Já fazia um mês desde que as batalhas campais mais brutais que aquela terra já presenciara, manchavam a vastidão fértil a nordeste de Ravenna. Paredes de escudos Zíngaros bloqueavam a forte investida Poitainiana pela disputa de acres e mais acres de planícies. Contudo, perdido em um pensamento alheio a toda desolação que o cercava, um jovem fixava o olhar vazio na pequena piscina esverdeada do jardim de Attasia; um pequeno punhado de grama verde e flores vivas em meio à palidez sórdida da guerra. Mais uma fria manhã outonal para todos os Attasianos, mas um dia precípuo para Arcadio, o filho do Conde Valenso. O último dia de uma infância desprendida de quaisquer preocupações, que não fossem sujar suas túnicas novas enquanto brincava nos campos do Conde. Soube que seria enviado para capital há meses, mas não proferiu uma só palavra a seu pai. Não queria expor seu medo a um homem que parecia não conhecer tal palavra, no entanto, guardá-lo para si o corroía por dentro. Estaria Mitra testando suas capacidades?

Passos leves sobrelevavam o aprazível som da água calma, mas Arcadio sequer percebeu. Encarava seu reflexo na água, tentando imaginar como seria a vida na capital à medida que temia a morte de seu pai durante sua ausência.

-Não vá cair aí dentro, paguei caro pelo tecido de seus trajes. _Devante esboçou um sorriso forçado. Perdera todo o jeito em ser afetuoso desde que Mitra levou sua esposa.

-Pai? Desculpa, não o percebi... _O garoto se desconcertou. Levantou-se e se afastou da borda, encarando seu pai que estava parado sobre os degraus que levavam a uma das portas da mansão. O homem estava impecavelmente vestido com uma túnica rubra adornada em fios prateados e uma capa, da mesma cor, que ia até os tornozelos protegidos por belas sandálias de couro. –Eles já chegaram?

-Estão a caminho. Pedi a Galbro que preparasse seu cavalo. _Começou a descer lentamente os degraus encarando o garoto. Percebia que uma aflição transbordava.

-O marrom escovado?

-Claro! Não foi o que você escolheu? _Arcadio sorriu sem jeito, e Devante o tocou no ombro. –Está assustado, não? _Arcadio apenas assentiu olhando para baixo, envergonhado diante do homem que mais admirava. –Não precisa ficar assim, você vai adorar a capital. Contratei um ótimo mestre para te ensinar a arte da esgrima, e o ancião que lhe dará aulas sobre política é o mesmo que me ensinou tudo que sei. Kordava tem um cheiro diferente, pessoas diferentes, construções diferentes... Até o ar lá é diferente. Verá o mar pela primeira vez, conhecerá a futura mãe de seus filhos, aprenderá tudo que precisa para assumir o meu lugar em Attasia, e quanto retornar, será um homem. _Os olhos de Arcadio umedeceram.

-Tenho medo de retornar e não te encontrar. _A voz falhava pelo choro contido. Devante ficou imóvel momentaneamente, e então o abraçou, comprimindo seu rosto contra o peito.

-Chore agora, pois quando retornar não chorará mais. Nunca mais se lembrará dessa sensação. _ Arcadio chorou. –Estarei mais vivo do que nunca, quando retornar. Triunfante com meu exército sobre a cavalaria Poitainiana. Sou imortal, não lembra? _Provocou, repetindo o que costumava dizer para fortalecer a confiança de seu filho, quando o mesmo era ainda mais novo. Arcadio não era mais tão jovem a ponto de acreditar nesse tipo de coisa, mas não pode conter o sorriso nostálgico que irrompeu seu choro.

-Serei um bom guerreiro quando voltar! E os salões de Kordava? São grandes como nas histórias que me contava? _Arcadio sorria com os olhos manchados e a visão turva. Começou a ensaiar permitir que a ansiedade superasse o medo.

-Tá brincando? Seu professor é o melhor que eu já vi combater, vai transformá-lo em um excelente espadachim. E os salões são tão belos quanto nosso jardim. _Vislumbrou em volta. –Grandes, reluzentes e sustentado por pilastras de bronze. Conhecerá uma Zíngara que jamais poderia sonhar em conhecer preso aqui no norte.

-E as garotas? São tão bonitas quanto era a mamãe?

-Conheci sua mãe lá, Arcadio. A beleza das Zíngaras é rara e peculiar, e costumam dizer que as mais belas mulheres de nosso país vivem em Kordava. Mas lembre-se de priorizar sempre o seu aprendizado. Deve retornar forte e esperto o suficiente para assumir meu lugar e herdar minhas terras. Está predestinado a isso. Não há como fugir do seu destino. Volte fraco e não apenas será devorado pelos lobos dos magistrados, como também envergonhará toda a nossa linhagem. _O Conde temia que o exagero nas palavras de afago pudesse retardar o endurecimento de Arcadio. Sempre fora bom com palavras duras, e se sentia desconfortável tentando assumir a sensibilidade sobrava em sua falecida esposa. De qualquer forma, isso era o que mais confortava Arcadio no momento. Afinal, se tinha algo que manteria seu pai vivo, nos tempos nefastos de guerra, até que retornasse, certamente era essa couraça rígida que se desenvolveu ao longo de tantos anos em sua forte personalidade. Ele queria viver, portanto, ele viveria! –Agora vá, construa seu nome! E não se esqueça de se despedir de Temistio... Ele está em seus aposentos. _Segurou o rosto de seu filho com ambas as mãos e lhe beijou a cabeça. O jovem enxugou as lágrimas com o antebraço e correu animado para a porta, empurrando-a. Os ecos de suas sandálias permearam os corredores da mansão.

Devante cruzou os braços observou mais uma vez seu belo jardim, antes de seguir para a porta. Estava sorrindo de verdade pela primeira depois de muito tempo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário